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O pobre honesto versus o pobre delinquente
Uma Sociologia do combate ao crime no Brasil. O muro invisível “moral” é aquele que divide os pobres honestos de um lado e os pobres tidos como delinquentes do outro
  Por que são os pobres quem mais apoiam as chacinas policiais em nome da lei e da ordem? As quais, antes de tudo, vitimizam seus filhos e vizinhos? Ele tem menos proteção policial, é verdade, mas esta não é única nem a principal razão. Muitas vezes nas comunidades existe, inclusive, a proibição de roubar membros da comunidade.
O apoio, a meu ver, se deve a outras razões que poderíamos chamar de “razões morais”. Depois de vários anos pesquisando os pobres, por exemplo no livro “A ralé brasileira”, cheguei à conclusão de que o muro que divide os pobres foi construído pelos ricos para melhor oprimi-los. O muro invisível “moral” é aquele que divide os pobres honestos de um lado e os pobres tidos como delinquentes do outro.
É uma divisão artificial criada pelos ricos, posto que sabemos que o roubo grande é feito pelos ricos na Faria Lima e outras praças. A noção de crime é uma construção social e não é crime no Brasil, portanto, assaltar 50 bilhões de reais, como fizeram os donos das Lojas Americanas recentemente, ou embolsar 800 bilhões do orçamento em isenção fiscal para empresas como a JBS ou Rede Globo.
Crime no Brasil é vender uma trouxa de maconha na esquina. Se for um preto, toma um tiro na cabeça ou é preso por 15 anos. Como ninguém explica como se dá a exploração econômica dos ricos, o pobre imagina ser o culpado da própria miséria.
Quem se sente culpado pela própria miséria é objetivamente humilhado pela sociedade. Não é necessário ter “consciência” da humilhação para se “sentir” humilhado. A humilhação é um sentimento que acompanha o pobre e o preto 24h por dia.
É aí que entra o golpe dos ricos. Como estes desconhecem as causas reais de seu infortúnio, os pobres tendem a se identificar com a moral dos ricos — ou seja, só os ricos podem roubar, e o pobre ladrão tem que ser morto. Para não se sentir “criminoso” o “pobre honesto” tende a jogar na conta do “pobre delinquente” as causas de sua situação vexatória.
O delinquente é, antes de tudo, um preto, o que já permite usar uma máscara perfeita para o racismo racial recalcado dos brancos e ricos. Mas pode ser o gay ou simplesmente a mulher. Racismo e sexismo são o arroz e feijão de tudo que acontece entre nós. Mas o racismo é o decisivo aqui.
O preto pobre sente que só pode construir um mínimo de autoestima neste contexto se assumir os valores das classes brancas que o oprimem. Aí ele passa a votar nos Cláudio Castro, Nunes e Tarcísio de Freitas da vida que ganham votos populares com a promessa de matar preto indiscriminadamente.
Para quem está em uma situação de humilhação e se sente o lixo do mundo, odiar os irmãos de cor e classe é uma boia de salvação moral: eu sou gente honesta, o vizinho que é traficante. É aí que o ódio recai sobre o vizinho, o irmão e o amigo. Manipular a insegurança existencial do pobre, para jogá-los uns contra os outros, é a especialidade da extrema direita. Mas isso tudo só é possível porque nunca se denunciou a causa real da miséria de nosso país.
Existe entre nós a construção de um povo desorientado que aprendeu a odiar o irmão e não as elites que o desprezam. Sem se mostrar ao pobre quem são os seus reais inimigos, ele seguirá apoiando massacres de outros como ele mesmo. Ainda que a próxima vítima seja, muito provavelmente, seu filho ou ele próprio.
Artigo -Jessé Souza - Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA
Site: Instituto Conhecimento Liberta



         
         
         
         










