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Do prazo perdido ao Estado precarizado: por que a reforma administrativa descarrilou

Publicado dia 23/10/2025 às 07h41min
Atrasos e vazamentos marcam GT opaco que centraliza regras, impõe teto aos Estados e ignora a Lei do Governo Digital, ameaçando pacto federativo e previsibilidade.

O atraso que virou método


O roteiro prometia celeridade e transparência. Em 28 de maio de 2025, a Câmara instituiu o Grupo de Trabalho (GT) da reforma administrativa com um cronograma explícito: apresentar relatório e textos finais até 14 de julho de 2025, antes do recesso. Não apresentou. Veio o recesso, veio agosto, setembro, outubro e a sociedade continuou sem acesso aos documentos. Em lugar de textos oficiais, surgiram fragmentos circulando informalmente em grupos de WhatsApp, “rascunhos”, acenos. O GT terminou de forma melancólica: prazos não cumpridos, debate semiclandestino e sem protocolo de proposição legislativa no sistema da Câmara. Quando a própria discussão legislativa migra para o off, quem perde é o controle social. Se o processo é opaco, o conteúdo que emerge por frestas merece escrutínio redobrado.

O GT e o “fichário panfletário”


Ao público foi oferecido um fichário volumoso: carta aberta, slogans sobre “acabar com privilégios”, “eficiência” e “digitalização”, e centenas de páginas que mal definem o problema e quase não se debruçam sobre o funcionamento real do Estado e do serviço público. O discurso do “modernizar” contrasta com a ausência de textos formais, de nota técnica seriada e de avaliação de impacto. A crítica não é contra a ideia de reformar, mas contra reformar assim: sem diagnóstico preciso, sem transparência e sem governança do processo. O que está em jogo é o desenho do Estado e aqui mora o risco federativo.

Pilar 1 — Pacto federativo sob ataque
Os novos incisos constantes da minuta de PEC ainda não apresentada formalmente do art. 22 propõem que a União “defina normas gerais” sobre gestão de pessoas, organização administrativa, governança, governo digital e controle. A promessa de padronização esconde uma padronização forçada, que reduz a responsividade local e desconsidera capacidades distintas de estados e municípios. Na prática, transfere-se para Brasília a moldura de regras que devem dialogar com realidades muito diferentes, do município metropolitano complexo ao pequeno ente com quadro técnico enxuto. O resultado previsível é conflito jurídico-político e engessamento das escolhas locais, invertendo a lógica cooperativa que o Brasil vem tentando consolidar. Se a decisão é tomada de forma verticalizada, o resto vira execução subordinada, inclusive orçamento e gestão de pessoas.

Pilar 2 — Limites orçamentários replicados


O art. 28-A pretende replicar um teto de gastos aos estados a partir de 2027, atrelado à inflação e a variações da receita. A fórmula única ignora heterogeneidades regionais e ciclos setoriais: diante de queda de arrecadação com demanda crescente (saúde, educação, segurança), o combo “teto rígido + pressão social” comprime políticas e empurra governadores e prefeitos a cortar.

Grave é que o 28-A também viola o plano do próprio GT: na página 10, o documento chamado de “Premissas reforma administrativo_v13 -1” diz que “Ajuste Fiscal/Meta de Ajuste Fiscal não serão tratados”, exceto “se o Presidente Hugo Motta determinar”. Onde está esse ato? Sem a determinação formal que adite o escopo, o GT rompe as regras do jogo que ele próprio anunciou e injeta por frestas um ajuste fiscal estrutural sob o rótulo de “reforma administrativa”. E quando a torneira aperta por norma centralizada e sem lastro procedimental, começa-se a mexer nos alicerces do serviço público.

Ingresso e cargos: a erosão da isonomia por atalhos


A possibilidade de concursos nacionais e de ingresso direto em níveis intermediários/superiores (até 5%) cria circuitos paralelos à regra geral do mérito e quebra a isonomia entre candidatos. A promessa de “agilidade” vira atalho: carreiras deixam de ter um campo de entrada definido e começam a conviver com exceções que favorecem quem já chega mais perto do topo. Isso tende a desalinhar trajetórias, criar ilhas de privilégio interno e fragilizar a legitimidade dos concursos como mecanismo universal. Carreiras que começam tortas, terminam instáveis.

Carreiras e desempenho: métricas sem lastro


Vinte níveis, progressão anual, remuneração inicial ≤50% da final e avaliações periódicas como motor de progressão e bônus soam gerenciais, mas podem desenhar incentivos míopes. Sistemas de desempenho funcionam quando medem resultados de política institucionalizada, têm feedback formativo e avaliação 360 graus, calibragem multiescala e não punem a colaboração. Sem isso, proliferam metas de atividade, corrida por números fáceis e competição disfuncional entre indivíduos e equipes. O risco é converter a avaliação em ferramenta de pressão vertical, substituindo aprendizagem por conformidade. Sem bom desenho de incentivos, o bônus vira loteria; a avaliação, ferramenta de pressão.

Remuneração e benefícios: incerteza travestida de modernização


O pacote de bônus de resultado, vedações e limites a auxílios promete “racionalizar” gastos, mas pode volatilizar a renda de servidores e bagunçar previsibilidade, eixo de qualquer carreira pública. Quando variáveis incertas ocupam o lugar da remuneração base, multiplicam-se contenciosos, dúvidas previdenciárias e incentivos ao curto prazo. Servidores que atendem na ponta, justamente os mais demandados, tendem a desengajar ou a buscar saídas privadas. Com renda instável, quem segura a ponta do serviço? O próximo passo da agenda mostra quem manda.

Governança & digital: condicionalidades como coleira


Amarrar progressões e bônus ao cumprimento de instrumentos de governança e a uma Estratégia Nacional de Governo Digital parece elegante no papel, mas pode virar punição coletiva quando a capacidade institucional é desigual. Em vez de fortalecer resultados, o desenho incentiva o “tick the box”: preenche-se formulário para “destravar” benefícios, enquanto a entrega efetiva fica em segundo plano. Boas práticas de governança e digitalização não se impõem por decreto: exigem capacitação, rotas graduais e aprendizagem organizacional.

E há uma contradição objetiva: a Lei 14.129/2021 (Governo Digital) já institui princípios, regras e instrumentos de transformação digital. Entre os pontos já vigentes:

Prestação digital de serviços e processo administrativo eletrônico com assinatura eletrônica válida (arts. 5º a 8º e 11).
Plataforma única com autosserviço, Carta de Serviços, Base Nacional de Serviços Públicos, painel de desempenho com tempo médio e satisfação do usuário (arts. 18 a 22 e 24).
Interoperabilidade de dados, eliminação de exigências redundantes e vedação de solicitar prova de fato já comprovado; uso do CPF/CNPJ como identificador suficiente (arts. 3º, 24, 38–41 e 28; também art. 10-A da Lei 13.460, alterada).
Transparência ativa e dados abertos (arts. 29–35), domicílio eletrônico (arts. 42–43), laboratórios de inovação e redes de conhecimento (arts. 17 e 44–45).
Governança, riscos e auditoria interna com foco em resultados e decisão baseada em evidências (arts. 47–49).
Ou seja, o problema não é falta de base legal, é execução: integração entre entes, padronização mínima, infraestrutura, capacitação e fiscalização do cumprimento. Condicionar a carreira do servidor a entregas que dependem de decisões e investimentos da alta gestão e de coordenação federativa inverte a responsabilidade e transforma déficit de implementação em sanção laboral.

Concentração decisória e controle expandido


A combinação de súmula vinculante do TCU, extinção de cargos por ato do Presidente (mediante estudos de “obsolescência”) e novos fundamentos para invalidação judicial de atos administrativos concentra poder e estreita o debate público. Sem garantias de contraditório social e sem salvaguardas federativas, cresce a chance de arbitrariedade e de decisões tomadas longe da realidade das políticas. É a clássica escalada: mais poder no centro, menos escrutínio compartilhado, mais assimetria na ponta. Num desenho assimétrico, implementar vira um pesadelo federativo.

Complexidade de implementação: quando a fórmula única não cabe no Brasil real


Exigir mudanças simultâneas de carreiras, avaliação, remuneração, governança e digital, em milhares de órgãos com capacidades díspares, é um convite à paralisia. Municípios com quadros reduzidos reagem com compliance formal, papéis e checklists, enquanto as entregas essenciais atrasam. A consequência é desigualdade: quem tem estrutura cumpre; quem não tem, paga o preço. E quem sustenta politicamente esse roteiro? É aqui que entram os nomes e a pressão social.

Quem assina o que não aparece
Segundo listas que circulam em grupos de WhatsApp, cerca de 80 deputados teriam assinado a “nova” PEC. A seguir, alguns dos autores, sem protocolo oficial na Câmara até a data de fechamento deste texto:

• Zé Trovão PL/SC
• Julio Lopes PP/RJ
• Evair Vieira de Melo PP/ES
• Gilberto Abramo Republicanos/MG
• Toninho Wandscheer PP/PR
• Amaro Neto Republicanos/ES
• Delegado Caveira PL/PA
• Marangoni União/SP
• Alceu Moreira MDB/RS
Ely Santos Republicanos/SP
• Gustavo Gayer PL/GO
• Ossesio Silva Republicanos/PE
Rodrigo Gambale Podemos/SP
• Dilceu Sperafico PP/PR
• Jorge Braz Republicanos/RJ
• Bibo Nunes PL/RS
Mauricio Neves PP/SP
• Marx Beltrão PP/AL
• Eros Biondini PL/MG
• João Maia PP/RN
• Jorge Goetten Republicanos/SC
• Allan Garcês PP/MA
• Diego Garcia Republicanos/PR
• Pedro Westphalen PP/RS
• Aluisio Mendes Republicanos/MA
• Capitão Alberto Neto PL/AM
• Paulo Azi União/BA
• Pedro Lucas Fernandes União/MA
• Joaquim Passarinho PL/PA
• Emidinho Madeira PL/MG
Pr. Marco Feliciano PL/SP
• Sargento Fahur PSD/PR
• Franciane Bayer Republicanos/RS
• Gilson Marques Novo/SC
• Jeferson Rodrigues Republicanos/GO
• Mauricio Marcon Podemos/RS
Luiz Philippe de Orleans e Bragança PL/SP
• Sóstenes Cavalcante PL/RJ
• Henderson Pinto MDB/PA
• Mauricio do Vôlei PL/MG
• Rodrigo da Zaeli PL/MT
• Altineu Côrtes PL/RJ
• Sanderson PL/RS
• Fernando Rodolfo PL/PE
• Carlos Jordy PL/RJ
• Mario Frias PL/SP
• Zucco PL/RS
• Delegado Ramagem PL/RJ
• Coronel Meira PL/PE
• Marcos Pollon PL/MS
• Ribamar Silva PSD/SP
• Caio Vianna PSD/RJ
• Rodrigo Estacho PSD/PR
• Sidney Leite PSD/AM
• Hugo Leal PSD/RJ
• Stefano Aguiar PSD/MG
• Delegada Katarina PSD/SE
• Padovani União/PR
• Pastor Gil PL/MA
• Laura Carneiro PSD/RJ
• Filipe Martins PL/TO
• Doutor Luizinho PP/RJ
• Igor Timo PSD/MG
• Átila Lins PSD/AM
Saulo Pedroso PSD/SP
• Reinhold Stephanes PSD/PR
• Luiz Gastão PSD/CE
• Luciano Amaral PSD/AL
• Danrlei de Deus Hinterholz PSD/RS
• Rodrigo Valadares União/SE
• Arthur Oliveira Maia União/BA
• Luiz Lima Novo/RJ
• Wellington Roberto PL/PB
• Paulinho da Força Solidaried/SP
• Elmar Nascimento União/BA
Kim Kataguiri União/SP
Vitor Lippi PSDB/SP
• Roberto Monteiro Pai PL/RJ
• Luisa Canziani PSD/PR

Nota de transparência: relação repassada e a ser confirmada no momento do registro formal da proposta na Câmara dos Deputados.

Contraponto propositivo: como seria uma reforma que merece esse nome


Uma reforma digna desse nome começa com transparência desde o dia 1: plano de trabalho público, consulta estruturada a estados e municípios e disponibilização contínua de minutas, pareceres e estudos técnicos em avaliação pelos parlamentares. Em desempenho, métricas com lastro: objetivos mensuráveis orientados a resultados de política, feedback contínuo, ciclos de calibragem e incentivos não pecuniários (desenvolvimento, mobilidade, reconhecimento de equipes). Em cultura organizacional, proteção e incentivo à colaboração: freios à competição predatória e estímulos a projetos interinstitucionais. No desenho federativo, normas mínimas e arranjos cooperativos, não centralizações impositivas: pactos por adesão, pilotos, rampas de maturidade e apoio técnico. Em pessoal, remuneração previsível combinada a variáveis responsáveis. Sem esses pilares, a reforma troca eficiência por aparência.

Notas conclusivas


O processo evidenciou o que não deve ser feito: reforma sem texto, sem método e contra o pacto federativo é atalho para o desastre. Não se constrói Estado forte com opacidade procedimental, condicionalidades punitivas e centralização normativa que ignora o Brasil enquanto federação. Convocação: (i) exigir a publicação integral e imediata das proposições legislativas; (ii) cobrar um cronograma, matriz de impactos e controle social; (iii) articular a autonomia federativa. A escolha é simples: ou o serviço público participa da arquitetura, ou será moldado de fora e contra si.

Vamos aceitar uma reforma por vazamento, ou impor uma por evidências e responsabilidade?

Artigo: Jorge Mizael
Cientista político, doutorando pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), com foco em comportamento político e estudos sobre mudanças constitucionais. Fundador da Metapolítica, consultoria premiada no Oscar da Comunicação Política Mundial em 2020 pela The Washington Academy of Political Arts Sciences. Indicado, em 2021, como Consultor Político Revelação pela mesma instituição. Colunista do portal ICL Notícias, onde analisa questões políticas e institucionais com ênfase em governança e a relação entre o Legislativo e o Executivo.

Site: Instituto Conhecimento Liberta

Fonte: Instituto Conhecimento Liberta

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